Há uma solidão que acontece mesmo quando se está junto.
Ela se senta entre dois corpos que se amam.
Divide a cama.
Acompanha os silêncios.
Em muitos casais homoafetivos, a solidão não começa no término.
Ela começa antes.
Começa quando o amor precisa se adaptar ao mundo.
Nem todo casal pode andar de mãos dadas em qualquer lugar.
Nem todo afeto pode ser espontâneo.
Há olhares que medem.
Espaços que exigem cuidado.
Palavras que precisam ser escolhidas.
Amar assim cansa.
O casal, então, cria um pequeno mundo só seu.
Ali dentro, é possível respirar.
Mas, fora dele, o amor se encolhe.
E aos poucos, esse “dentro” vira o único lugar seguro.
Freud dizia que o amor é sempre uma troca de faltas.
No casal homoafetivo, muitas vezes, o outro não é só amado é abrigo, espelho, proteção e validação.
Isso aproxima.
Mas também pesa.
Quando o mundo lá fora não acolhe, o casal carrega tudo sozinho.
As dores.
As conquistas.
Os medos.
E aí nasce uma solidão curiosa: estar junto, mas sentir que ninguém mais vê.
Lacan falava que desejamos ser reconhecidos pelo olhar do outro.
Quando esse reconhecimento só existe dentro da relação, qualquer conflito vira ameaça.
Qualquer afastamento assusta.
O casal se ama, mas sente medo de perder o único lugar onde pode existir inteiro.
A solidão aparece nos pequenos gestos.
Na visita que não acontece.
No almoço de família onde um vira “amigo”.
Na história que não é contada.
Há também a solidão de não poder pedir ajuda.
De não saber para quem contar.
De sentir que os problemas do casal precisam ser resolvidos em segredo.
Como se o amor tivesse que dar conta de tudo sozinho.
O casal se ama, mas sente que não pode falhar.
Não pode se desorganizar.
Não pode mostrar fragilidade.
Porque já precisou lutar tanto para existir.
Anaïs Nin escreveu que a intimidade verdadeira exige coragem.
Nos casais homoafetivos, essa coragem é diária.
Mas quando não há testemunhas, o amor corre o risco de se fechar demais.
O casal se protege.
Mas também se isola.
E quando surgem conflitos, nem sempre há com quem dividir.
A dor fica entre dois.
O silêncio cresce.
Quando esse vínculo termina, a solidão que aparece não é nova.
Ela apenas perde o disfarce.
O fim da relação não leva só o amor.
Leva o mundo que o casal construiu para sobreviver.
Por isso o luto pode ser tão profundo.
Não é só a perda do outro.
É a perda do único lugar onde se podia ser.
Falar dessa solidão é importante.
Porque ela não nasce da relação em si, mas das condições em que esse amor precisou existir.
A psicoterapia pode ser um espaço onde essa solidão a dois é finalmente nomeada.
Onde o casal — ou quem ficou — pode entender que não estava errado, apenas estava tentando amar em um mundo ainda estreito.
Talvez o cuidado comece quando percebemos isso: o problema nunca foi amar demais, mas amar com pouco espaço.
Referências
Freud, S. Luto e Melancolia.
Lacan, J. O Seminário.
Foucault, M. História da Sexualidade.
Shakespeare, W. Romeu e Julieta; Hamlet.
Nin, A. Diários.
Conselho Federal de Psicologia. (2018). Código de Ética Profissional do Psicólogo.
Conselho Federal de Psicologia. (2020). Psicologia e diversidade sexual: referências para a prática profissional.






