Você já sentiu culpa por simplesmente não estar produzindo nada?
Talvez num domingo à tarde, quando decide descansar, mas uma voz interna sussurra: “você podia estar adiantando algo”. Essa voz é o retrato de uma era em que o “ser” vale menos que o “fazer”.
Vivemos imersos em uma cultura que transforma até o autocuidado em tarefa. Dormir, se alimentar bem e meditar deixaram de ser experiências para virar métricas — tudo precisa ser monitorado, medido e otimizado.
O culto da produtividade e o vazio disfarçado de sucesso
A lógica da alta performance se infiltrou em quase tudo: trabalho, relacionamentos, lazer. Não basta correr — é preciso correr melhor; não basta ler — é preciso ler mais rápido; não basta descansar — é preciso que o descanso seja “produtivo”. Essa mentalidade, reforçada por redes sociais e discursos motivacionais, transforma a vida em um eterno projeto de melhoria.
Mas há um custo silencioso. O cérebro humano não foi feito para operar em modo “otimização constante”.
A ausência de pausas fragmenta a atenção, eleva níveis de cortisol e gera fadiga emocional. E quanto mais nos esforçamos para alcançar um ideal inatingível, mais distante nos sentimos de nós mesmos.
Quando o cuidado vira cobrança
O autocuidado, em sua essência, é um gesto de gentileza consigo mesmo. Mas na era da performance, ele se distorceu: virou obrigação.
É comum ouvir frases como “preciso fazer yoga”, “preciso meditar”, “preciso desconectar”. O verbo “precisar” denuncia o sintoma — transformamos o descanso em dever moral, em uma obrigação protocolar para a produtividade da vida.
Essa inversão gera culpa e autojulgamento, especialmente em pessoas que já lidam com traços de perfeccionismo e ansiedade.
Em terapia, vemos esse padrão se repetir: quanto mais a pessoa busca “melhorar”, mais se afasta da própria experiência de estar viva — que inclui imperfeição, pausa e falha.
A fadiga do desempenho e o corpo como termômetro
Os sinais físicos e mentais desse excesso são claros, embora muitas vezes ignorados:
- cansaço persistente mesmo após o sono;
- sensação de estar sempre atrasado;
- irritabilidade e dificuldade de concentração;
- perda de prazer em atividades simples.
O corpo tenta avisar o que a mente insiste em calar. O descanso, antes natural, se torna algo que precisa ser “merecido”. Assim nasce o esgotamento — não apenas do trabalho, mas do próprio sentido de existir.
Reaprender a desacelerar
Desacelerar não é desistir — é recuperar a capacidade de presença.
Pequenas práticas podem ajudar:
- Reaprender o ócio: permitir momentos sem meta ou propósito, apenas por estar.
- Redefinir sucesso: incluir descanso, vínculos e prazer como métricas de vida.
- Observar o discurso interno: transformar o “preciso” em “posso” — gesto simples que muda o tom da relação consigo.
- Terapia: espaço de pausa consciente, onde o fazer dá lugar ao ser, e onde podemos revisar o modelo de valor que herdamos da cultura da performance.
Conclusão — o direito ao intervalo
Talvez o maior ato de coragem hoje seja parar.
Parar não é perda de tempo — é o que nos devolve o tempo.
Em um mundo que confunde velocidade com valor, o verdadeiro desempenho é sustentar presença. E presença só nasce do descanso.
Permita-se existir sem ser medido.
Referências bibliográficas
Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
Rosa, Hartmut. Aceleração e alienação: para uma teoria crítica do tempo na modernidade tardia. São Paulo: Unesp, 2019.
DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu Editora, 2017.




