Para muitos, o mundo é sensorialmente avassalador: luzes invasivas, sons sobrepostos, o atrito doloroso de uma etiqueta na roupa. Para outros, é "silencioso" demais, exigindo esforço para se sentir presente. Essas alterações no processamento sensorial são características neurológicas comuns na neurodivergência. Longe de ser uma falha ou "frescura", trata-se de um sistema nervoso que processa a realidade de forma singular.
No livro “Somos Animais Poéticos”, Michèle Petit argumenta que a arte e a literatura são ferramentas de sobrevivência para "dar forma ao caos em tempos de crise". Para o neurodivergente, essa "crise" é frequentemente o próprio cotidiano; a sobrecarga que precisa ser digerida. Assim, a exploração sensorial e a contemplação deixam de ser luxos e tornam-se ferramentas vitais de regulação.
A contemplação é um exercício de foco singular: a textura de uma folha, o timbre de um instrumento, o calor da xícara de café. É um ato de autorregulação consciente. Quando bem-sucedida, a recompensa é o "pequeno prazer". Para um sistema nervoso sobrecarregado, esses momentos funcionam como âncoras de segurança e previsibilidade, devolvendo o equilíbrio ao cérebro e provando que o mundo não é feito apenas de ruído.
É aqui que a arte revela sua profunda função terapêutica. Ela permite explorar os sentidos em um ambiente seguro. O ato de criar, seja desenhar, pintar, dançar ou escrever, é a externalização desse processo. É pegar o caos interno e organizá-lo: transformar ruído em música, sobrecarga visual em pintura. Amélie Poulain, protagonista de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, é o arquétipo perfeito desse processo. Ela não é uma consumidora passiva de prazeres, mas uma artista que molda sua realidade. Através de sua percepção aguçada dos detalhes, ela cria beleza e significado, tornando a existência mais leve para si e para os outros.
Portanto, essa relação é mais que uma ideia; é uma ferramenta a ser colocada em prática. A contemplação serve como ferramenta de exploração; os pequenos prazeres são as âncoras de segurança; e a arte é a linguagem sublime que transforma o caos em refúgio.
Para aprofundar: Recomendo o livro Somos Animais Poéticos, de Michèle Petit, e o filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain.
Inspirem-se e construam seus próprios refúgios habitáveis no cotidiano.
Referências
PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora 34, 2024.
O FABULOSO destino de Amélie Poulain. Direção de Jean-Pierre Jeunet. França/Alemanha: UGC Fox Distribution, 2001. 1 DVD (122 min).
DUNN, Winnie. Living Sensationally: Understanding Your Senses. Jessica Kingsley Publishers, 2009.




