O diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em adultos tem se tornado tema recorrente na saúde mental contemporânea — não apenas por um aumento na conscientização, mas porque muitas pessoas passaram a vida inteira convivendo com sintomas que só recentemente começaram a ser reconhecidos.
Entre elas, mulheres adultas são o grupo que enfrenta as maiores barreiras diagnósticas.
Este artigo propõe uma reflexão sobre como gênero, raça e classe social influenciam o acesso ao diagnóstico de TEA em mulheres, e como a ausência desse reconhecimento produz sofrimento psíquico, diagnósticos incorretos e um ciclo de invisibilidade clínica que perdura por décadas.
O TEA é uma condição neurodesenvolvimental caracterizada por diferenças na comunicação social, nos interesses restritos e nos padrões repetitivos de comportamento (APA, 2023).
Ainda que esteja presente desde a infância, muitas mulheres só recebem o diagnóstico na vida adulta — às vezes após os 30, 40 ou até 50 anos.
Isso acontece porque o modelo diagnóstico historicamente utilizado foi construído com base em meninos brancos, ocidentais e de classe média (Pellicano & den Houting, 2022).
O chamado “fenótipo autista típico” não contempla a forma como muitas mulheres experienciam o espectro.
Autismo no feminino: um fenótipo mais sutil, mas não menos intenso
Diversos estudos apontam que a manifestação do autismo em mulheres tende a ser mais internalizada e menos visível.
Elas podem apresentar:
● maior habilidade verbal;
● interesse por temas socialmente aceitos para mulheres (artes, literatura, psicologia,
animais, estética);
● timidez, retraimento ou ingenuidade social confundidos com “personalidade”;
● sensibilidade sensorial intensa;
● rotinas rígidas e necessidade de previsibilidade;
● grande esforço para se adequar socialmente.
Esse conjunto de aspectos, embora real e clinicamente significativo, costuma ser naturalizado na infância e adolescência — especialmente em meninas que aprendem desde cedo que ser quieta, doce, sensível ou introspectiva é “ser feminina” (Pereira & Castro, 2024).
Camuflagem social: a estratégia que adia diagnósticos
A camuflagem social (masking) é um dos fenômenos mais relevantes no diagnóstico tardio.
Trata-se de um conjunto de estratégias que pessoas autistas usam para parecer neurotípicas em interações sociais — e que se mostram especialmente presentes em mulheres (Fink & Moreira, 2021; Hull et al., 2020).
O masking pode envolver:
● imitar expressões faciais;
● roteirizar diálogos;
● suprimir movimentos autorregulatórios (stims);
● copiar padrões de comportamento;
● adotar uma persona social estrategicamente construída.
Embora adaptativas em curto prazo, tais estratégias cobram um preço alto: exaustão cognitiva, ansiedade, depressão, burnout autista e crises emocionais intensas (Bradley et al., 2021; Del Porto, 2023).
Quando a interseccionalidade escancara desigualdades
Para mulheres negras, indígenas, periféricas ou em vulnerabilidade socioeconômica, o cenário se agrava.
Esses grupos enfrentam:
● menos acesso a serviços especializados;
● maior probabilidade de ter comportamentos interpretados como indisciplina ou
problema familiar;
● racismo estrutural que desqualifica sua queixa clínica;
● atrasos ainda maiores no diagnóstico (Patueli, 2025).
Muitas mulheres racializadas só recebem diagnóstico em contextos de crise, como tentativas de suicídio, colapsos emocionais ou episódios de burnout severo (Menezes, 2020 apud Rocha et al., 2024).
Comorbidades e sofrimento subjetivo invisibilizado
O diagnóstico tardio não ocorre isoladamente: ele se associa a um ciclo de sofrimento emocional.
Pesquisas mostram que mulheres autistas têm altas taxas de depressão, ansiedade, esgotamento, transtornos alimentares e burnout (Cassidy et al., 2018; Benevides et al., 2024).
Muitas chegam primeiro com queixas de:
● instabilidade emocional,
● fobia social,
● dificuldade de manter vínculos,
● exaustão crônica,
● problemas no trabalho,
● experiências traumáticas em relações sociais.
E são diagnosticadas com transtorno de personalidade borderline, ansiedade generalizada ou depressão resistente — antes que o TEA seja sequer considerado.
O que precisamos mudar?
A literatura aponta caminhos fundamentais:
● instrumentos diagnósticos sensíveis às diferenças de gênero;
● formação contínua de profissionais em neurodesenvolvimento e neurodiversidade;
● escuta clínica qualificada, que valorize narrativas em primeira pessoa;
● políticas públicas que ampliem o acesso ao diagnóstico e reduzam filas;
● perspectiva interseccional no atendimento psicológico;
● reconhecimento de que o TEA não é uma experiência homogênea.
Compreender o TEA em mulheres adultas exige uma mudança profunda no olhar clínico.
É preciso reconhecer que o autismo, ao se manifestar de forma diferente em cada pessoa, também é atravessado por gênero, raça e classe — e que esses atravessamentos podem esconder sintomas que nunca deixaram de existir.
O diagnóstico tardio, embora desafiador, não representa um fim, mas o início de um processo de reconstrução identitária, de autoconsciência e de acesso a direitos.
Ao integrar um olhar interseccional, ético e sensível, profissionais da saúde mental podem contribuir para diminuir o sofrimento histórico dessas mulheres e construir práticas clínicas mais humanas, inclusivas e socialmente comprometidas.
Referências
APA. DSM-5-TR: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Artmed, 2023.
Benevides, S. et al. (2024). Evidências preliminares de duas novas escalas de autismo. RSD.
Cassidy, S. et al. (2018). Suicidal ideation in autistic adults. The Lancet Psychiatry.
Fink, B.; Moreira, A. (2021). Transtorno do espectro autista em meninas. CEUB.
Hull, L. et al. (2020). Camouflaging Autistic Traits Questionnaire (CAT-Q).
Patueli, T. (2025). Transtorno do Espectro Autista e Interseccionalidade. UFF.
Pellicano, E.; den Houting, J. (2022). Shifting from ‘normal science’ to neurodiversity. JCPP.
Pereira, L.; Castro, T. (2024). Espectro autista feminino. Appris.
Rocha, P. et al. (2024). Impacto da camuflagem social no diagnóstico tardio do TEA. Acervo Saúde.




