Se eu perguntar se você se ama, provavelmente a resposta virá depressa. É comum que os pacientes digam “claro, eu me amo”, sem que seja preciso pensar muito sobre isso. No entanto, se eu perguntar se você se odeia, a tendência é que a resposta demore um pouco mais.
Na verdade, muitas pessoas se odeiam, mas não sabem disso. E quando perguntadas, enfrentam, mesmo que por um momento, essa possibilidade, e se sentem desconfortáveis com a ideia de nunca terem pensado sobre isso antes.
Autoestima é uma dessas palavras que caíram na boca popular em meio à moda de autocuidado, e que o desgaste do uso fez perder o impacto de seu verdadeiro significado. Quando se ouve falar sobre autoestima, cai-se sempre nos mesmos chavões: amar-se, cuidar-se, pôr-se em primeiro lugar. Está bem, tudo isso é importante, mas há uma dimensão mais profunda sobre a autoestima que, pela pressa do mundo de hoje, acabamos quase nunca elaborando: o choque de odiar-se.
Muitas pessoas se odeiam sem saber. Se questionadas, essas pessoas dirão “não, eu me amo, eu me adoro”, mas fumam ou bebem em demasia, relacionam-se com pessoas que lhe causam sentimentos conflitantes, e boicotam as próprias tentativas de sucesso reiteradas vezes ao longo da vida. Jogam oportunidades fora, ou agem impulsivamente com pessoas e contextos de maneira a se arrependerem mais tarde, julgam-se a cada gesto ou palavra. Odiar-se, na maioria das vezes, é um gesto inconsciente. Investigar as causas desse sentimento é uma boa maneira de se mudar a perspectiva de si mesmo e desfazer os nós que causam esses sofrimentos ‘invisíveis’.
A autoestima está intimamente ligada com o desempenho acadêmico e laboral, duas instâncias centrais na vida, e grandes refletoras das dimensões emocionais. A autoestima, ou seja, ter estima por si mesmo, influencia o modo como nos vemos no mundo, e nosso papel nessa mesa de negociações entre o que queremos e o que podemos dar. Odiar-se nada mais é que uma consequência de uma avariação da autoestima, e um sintoma de urgência (Sheehy etal., 2019) 1.
É muito interessante o exercício de conviver com pré-vestibulandos e concurseiros em geral. Atendendo esse público, é possível ver passar bem diante dos seus olhos as defesas egóicas, aqueles movimentos que a psiquê faz para disfarçar seu sofrimento. “Não sei se quero mesmo passar”, disse a pessoa que, na verdade, não se sente capaz de passar. Ela quer, mas não sente que pode, então sua mente cria uma dúvida sobre seu desejo que ameniza a convicção de sua incapacidade, a de que ela, na verdade, não quer. Essa pessoa não querendo passar, o prejuízo de não passar é menor, pois, diante do fracasso, ela pode dizer “eu nem queria mesmo”. Tal movimento é perceptível em pessoas que intentam passar em concursos, mas não conseguem se concentrar para estudar.
Sabem que precisam se prostrar sobre as apostilas, mas não conseguem, ou são acometidas por dúvidas, ou procrastinam. No fundo, a voz que reverbera pelo crânio diz algo como “eu não sou capaz”.
Quando consideramos a obra freudiana, é comum que o fracasso e a baixa autoestima cumpram papeis adaptativos na vivência psíquica. Ou seja, não conseguir algo que se deseja na verdade justifica, compensa ou até mesmo comprova crenças internas. Pessoas que acreditam não serem merecedoras de sucesso podem ter essa crença intensificada a cada novo fracasso, como se dissessem para si mesmas “viu? Eu sabia que não conseguiria”.
O contrário também acontece. Pessoas que, ao conseguirem algo que muito desejaram, sentem-se frustrados, tristes. Essa reação emocional ocorre de modo a desfazer o êxito da conquista, e reflete um sentimento de culpa, como se vencer fosse, por alguma associação inconsciente, errado. Os motivos pelos quais essas crenças ocorrem são diversos, podendo contemplar um espectro desde a infância até episódios recentes. Nunca se sabe a origem de uma crença.
Pessoas envolvidas em relacionamentos tóxicos de trabalho ou amorosos, por exemplo, podem criar convicções equivocadas sobre si mesmas, e acabar moldando sua vida em torno dessas ideias, criando fontes de angústia e sofrimento ‘invisíveis’. “Eu sou uma pessoa errada; eu não faço nada direito; eu magoo as pessoas”, e assim por diante.
O reforço da autoestima está intimamente ligado à compreensão dos motivos pelo ódio por si próprio, e pelo alinhamento das vias cognitivas que fundamentam tais crenças. Um dos papeis da psicoterapia é justamente essa investigação corretiva, em que a perspectiva de si mesmo passe a funcionar de forma benéfica.
Importante salientar: odiar-se eventualmente faz parte da experiência humana e talvez represente importante sintoma de necessidade de cuidado. Como a casca da ferida que arde para denunciar um machucado que precisa de cuidados.
Não se atentar a esses sentimentos autoinflingidos e não compreender suas fontes, no entanto, é fator crucial para o desenvolvimento de psicopatologias graves, das quais algumas podemos citar depressão, ansiedade, psicoses e risco de ideação e tentativa suicida (Mullarkey, Marchetti, & Beevers, 2019) 2.
1 SHEEHY, K. et al. An examination of the relationship between shame, guilt and self-harm: A systematic review and meta-analysis. Clinical Psychology Review, v. 73, p. 101779, out. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.cpr.2019.101779.
2 MULLARKEY, M.; MARCHETTI, I.; BEEVERS, C. Using Network Analysis to Identify Central Symptoms of Adolescent Depression. Journal of Clinical Child & Adolescent Psychology, v. 48, n. 4, p. 656-668, 2019.




